A pesquisa que deu origem ao Observatório da Democracia e dos Direitos, “Policiamento de manifestações e a qualidade da democracia no Brasil e na Irlanda do Norte”, financiada pelo Newton Fund e pela British Academy e já em fase de conclusão, é uma das muitas pesquisas sobre segurança pública que têm investigado as problemáticas da ação policial no nosso país. 

Foto: Cláudia Moraes. 

Buscando entender a atuação da polícia brasileira no boom das manifestações ocorridas entre 2013 e 2014, e as motivações históricas por trás de práticas fundamentalmente repressivas, a pesquisa parte da comparação do policiamento de manifestações feito no Brasil e na Irlanda do Norte. Assim, foi investigado a formação das instituições policiais e a forma como, nos diferentes países, estas carregam o histórico de ações violentas contra a sociedade. Compreendendo a forma como a Irlanda do Norte lidou com essa questão, a comparação aponta para a necessidade de questionamento de uma polícia violenta como forma de dar legitimidade a uma democracia construída em torno dos direitos à liberdade de expressão e de manifestação pela sociedade, resistindo à violência estatal por uma melhor participação política.

Na Irlanda do Norte, os movimentos que buscaram resistir à hegemonia britânica entre 1968-1998 marcaram inúmeros conflitos civis e a consequente hostilidade policial como forma de controle social. Os confrontos, no entanto, deram início a um processo de paz no fim dos anos 90 que resultou numa reforma da polícia local. Assim, a criação da Parades Commision (Comissão de Passeatas), junto à Ouvidoria de Polícia em 1998, instituiu no país uma série de protocolos para os policiais, organizadores e manifestantes com o objetivo de evitar conflitos nos eventos públicos, uma vez que se estabelecia a comunicação entre todas as partes. Tais medidas contribuíram não somente para diminuição da contenção em protestos, como também reformulou a prática de policiamento das manifestações, de forma que os policiais treinados para essa especificidade tenderam a atuar com o uso mínimo da força e de acordo com o consenso social.

No Brasil, a situação é bem diferente. Visto que, desde o período da ditadura civil-militar, a instituição policial continua marcada pela não-transparência de seus protocolos, os casos de violência generalizada e impunidade de seus atores continuaram a ocorrer, sobretudo se tratando de grupos como jovens negros da periferia, principais vítimas da brutalidade policial até então. Com a chegada e o acesso aos materiais de filmagem pela população nos anos 90, alguns dos crimes cometidos pela PM vieram a público pela difusão das grandes mídias e serviram para sensibilizar a opinião pública – como o caso da Favela Naval. Mas a tentativa de modernização da polícia brasileira nessa mesma época, inclusive tomando o Reino Unido como um modelo, foi recebida com resistência pelos agentes.

Nesse cenário, pode-se entender como os confrontos diretos com a população nas manifestações de 2013-15, que resultaram em vários casos de aprisionamento e vítimas da violência policial, revelam uma criminalização velada da prática de manifestação, ainda vista como uma afronta à ordem pública, e denunciam o autoritarismo e consequente abuso do poder pelos agentes policiais no Brasil. 

Em nossa metodologia enumeramos conjuntos tipificados de entrevistas de acordo com os interesses do tema de nossa investigação: representantes de um conjunto de organizações não governamentais (Ong's) que atuam na questão da defesa dos direitos humanos no Brasil e na defesa das liberdades políticas e direito à liberdade de expressão e manifestação como por exemplo, Artigo 29 e Sou da Paz, etc.; instituições atuantes na defesa dos direitos humanos em governos locais, estaduais e/ou poderes legislativos e judiciário como por exemplo, Promotoria Pública do Estado de  São Paulo, Ouvidoria das Polícias do Estado de São Paulo, Conselhos em direitos humanos no estado de São Paulo; e, por fim, ativistas e representantes de entidades associativas, representantes da sociedade civil em geral, envolvidas em organização de protestos políticos, manifestações, passeatas, assembleias públicas, como por exemplo, militantes históricos de partidos políticos da esquerda, coletivos, frentes políticas, etc. 

Após a tipificação executamos entrevistas utilizando da metodologia “bola de neve” que, iniciada com um primeiro entrevistado-chave, desdobra-se em um conjunto de outros entrevistados a partir de indicações/sugestões e informações do entrevistado inicial. As entrevistas seguiram um roteiro semiestruturado direcionado por um roteiro previamente elaborado e foram gravadas em audiovisual - resultando em um “banco de histórias” que aborda a experiências das ONG´s na atuação da defesa de manifestantes políticos em São Paulo, levantamento de casos de violação dos direitos dos manifestantes, casos de abuso/violência policial, protocolos de ações em manifestações organizadas pela sociedade civil, questionamento dos protocolos policiais, exemplos e caso específicos de manifestações em São Paulo entre 2013 e 2015.

Fotógrafo Sérgio Silva no pós cirúrgico após ser atingido por uma bala de borracha enquanto trabalhava na cobertura do protesto na noite anterior. 14/06/2013

As entrevistas editadas foram compiladas e serviram de material base do  documentário “Protesto não é crime!”. Produto final da pesquisa, o documentário expressa resultados da pesquisa, versando sobre o policiamento das manifestações que, não realizado em acordo com a sociedade, abre margem para violação dos direitos civis - e até mesmo humanos - principalmente entre os cidadãos que se ocupam das vias públicas como forma de reivindicar direitos. As imagens alternadas em fotografias e vídeos exprimem toda uma série de táticas policiais que, mesmo consideradas “não-letais”, carregam as marcas repressivas de uma época em que protestar sequer era permitido. Assim, as considerações feitas demonstram uma crise das instituições policiais no Brasil, e a necessidade de uma ruptura com os modelos autoritários de controle social para o pleno exercício do regime democrático no país, uma vez que - o poder de manifestação - se faz o pilar de toda e qualquer democracia. 

O paper foi apresentada no 20º Congresso Brasileiro de Sociologia, e pode ser lido na íntegra através do link CP 24 - Sociologia da Violência

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